segunda-feira, 16 de outubro de 2017

GINA, A AMANTE DE TODAS AS COISAS

Gina vivia encarando a embalagem de palitos de dente e não se reconhecia na moça caucasiana de sorriso largo e cítrico da foto. Considerava-se bem menos sem sal. Dizia essas e várias outras coisas entre doses de água ardente e queijos coalhos, gritava ao mundo que basta, já havia prolongado muito sua sabotagem a própria pedra que ela rolava com tanto suor de seu corpo e esmero de sua mente, como Sísifo, que, por sua vez, ela achava otário. Só havia um pequeno problema... Sua pedra tinha nome, endereço e sangue nas veias. Chamava-se Elis e estava repousando sua boca trêmula em um copo de vidro temperado do tipo americano repleto de cerveja em qualquer lugar ao norte dali, com sua calma habitual, todavia bem como a cocaína que Gina tinha mandado pra cabeça em cima da Bíblia com o canudo azul que tomou sua Fanta laranja ciquenta e dois minutos atrás, Elis era demasiado vívida pra essa calma ser o resumo misto de sua existência e porte em cima dessa terra de meu Deus.   Ali, naquele minúsculo cubículo, drogada e bêbada, encarando sua xará de madeixas claras e rosto simetricamente capitalista, mordendo um palito de araucária, desandou em soluços e viu-se numa situação nunca antes pensada. No fundo estalava o grave torácico, viciante e nasal de Zé Ramalho, quando instintivamente a menina colocou as mãos nos bolsos procurando qualquer coisa que lembrasse sua sólida e diária sensação de amar o ar. Era isso. Amar Elis era como amar o ar. Não se vê, não se toca, mas entra pelos pulmões e da o ar da sua graça na onipresença de todas as coisas. Era como amar a própria Gina estampada na caixa de papelão, com aquele místico semblante aristocrático.  
Os apáticos olhos fixos e assaz claros da imagem, quase como uma santa, já narravam a verdade oculta, que a cada passo mais e mais se estabelecia. A garota encontrou em seus bolsos trinta e seis centavos, uma bala de iorgute, uma ponta e quatro chaves. Passou a mão sobre suas pernas, colar, brincos, nada. Nada lembrava Elis. Precisava de algo pra concentrar suas idéias, queria atirar fosse o que fosse pela janela, no intuito psicológico de começar uma nova era, uma nova história. Foi então até o banheiro, lavou o rosto, encarou-se no espelho. Devia jogar sua pedra pelo barranco?  
O queijo não havia lhe caído bem, se sentia quente ao mesmo tempo em que lhe corria um frio na barriga inexplicável, como quando entramos num tobogã, num ônibus sem rumo, ou todas essas armadilhas deliciosas de se cair.
Decidiu então ver aonde ia dar. Se não desse em nada, não seria menos impactante que sua vida toda somada.
Entretanto se florescesse e o acaso prosperasse, nunca haverá de existir alguém tão feliz, nem Sisífo e nem Drummond, com uma pedra no meio do caminho, como Gina, a amante de todas as coisas.
Sorriu pro espelho e respirou o mais fundo que pode. Sentiu sua força da natureza encontrar a dela, num beijo tenso, doce.
Saiu e mandou marcar na conta, furtando consigo a caixa de palitos.
A idéia de ter um par de olhos na estante até a vivacidade bater a porta, se bater, era agradável, trazia paz. E paz era tudo, além de Elis, que Gina desejava profundamente naquela noite.  

D'ANGELO